Outono by Oliveira
Para Concha Rousia de Galiza
Outrora eram sons de saudosos violinos, de graves violões, langor de mágico piano, doce melodia de flautas embalando meus sonhos na pasmaceira de ocasos que prenunciavam o acabamento de algo inda indefinido, mas sentido no âmago da memória ancestral de minha alma... Sonhos extravagantes cavalgando em disparada pelos campos, gerânios nas janelas abertas para o vale em ouro, árvores despidas de antigas mágoas, rio levando em sua correnteza as folhas mortas de todos os propósitos... Recordo isso, e minha alma se enche de uma ânsia esmaecida, de uma saudade brumosa como se fosse uma cortina disfarçando a véspera do acabamento de tudo...
Hoje sei que minha alma pressentia o cárcere mudo, a dor do desamparo do calabouço, quando assistia ao espetáculo do ocaso e invadia-me um desassossego indistinto que fazia transbordar a taça amarga de outras existências esquecidas no porão de ser... Eu não trazia meu coração partido, não sabia interpretar com clareza o turbilhão de emoções plúmbeas que se avolumavam e oprimiam meu coração com uma ânsia de náufrago em mar noturno, quando, ao longe, soava dolente a hora do entardecer...
Ah, meu Deus! Hoje são girassóis de tédio, velhas chagas abertas, réquiem do sol nas horas trêmulas do ocaso, palidez de rosas e lírios em jardins de esquecimento, velhas cartas amareladas pelo tempo, lembranças vãs de intentos malogrados; vento em atropelo no ar que alberga as folhas mortas que se desprendem atônitas, rubras de espanto ou amarelecidas como rosas esquecidas entre as páginas de um livro jogado no sótão da memória e que se deixam levar entorpecidas, ébrias, decaídas, entregues ao destino...
Ouço, vindo de muito longe, o som nostálgico dos sinos de minha infância perdida. Por certo dobram por meus desenganos, pela nostalgia que sinto ou pela assombrosa solidão de meus inúteis dias... Dobram, dobram por meu espanto perante esta hora vestida de púrpura em que não sei o que fazer de mim... Vem-me à memória a pipa que confeccionei com as cores de meus sonhos, que sonhei planando colorida e que jamais alçou voo na palidez azul, da tarde clara e sem fim, de um outubro rubro guardado na parede da memória, testemunho da fugacidade do tempo...
Outono... Fim de tarde... Tudo parece diluir-se num espetáculo de cores e sossego… Um vento brando toca as folhas mortas, bailarinas desnorteadas, que rodopiam num balé triste e sincronizado. Assisto a tudo impassível. Quisera, meu Deus, enxergar o outono com os olhos do menino que fui. Impossível. Trago a íris rodeada por uma bruma espessa, um mapa de fissuras profundas no rosto; nas costas, o peso do fardo de tantos fracassos, de inúmeros malogros, de muitíssimas desilusões recolhidas na monotonia noturna de sucessivos outonos... Hoje, meu coração é um vitral estilhaçado de uma catedral gótica, no alto de uma colina íngreme, inatingível...
Os pássaros cantam seus últimos acordes sonoros, agradecendo o dia que se dilui preguiçosamente num espetáculo de cores no mata-borrão do céu e acordam em mim alguma coisa adormecida no emaranhado da alma, desenham um mapa de pequenos rios, nascidos dos olhos da memória, águas que não puderam suavizar as inúmeras partículas de dor nascidas de fracassos acumulados, de travessias muito antigas por longínquas terras com um gosto de outros mares... O poder que se oculta por trás dessas imagens sugere uma estranha força e desperta em mim sentimentos inomináveis.
Quedo-me vencido, folha-morta numa alameda de árvores seculares. Ouço Chopin diante da lareira, carpindo as rosas murchas da saudade da criança dos vales que se esvaiu no tempo. Leio Fernando Pessoa, fumo ópio, embriago-me de absinto. Lá fora, o outono sempre o mesmo... Eu, meu Deus, tão outro!...
Oliveira
CONCHA, UM POEMA DESENHADO NUM TEXTO DE TERNA NOSTALGIA, DESSAS QUE NOS AFETA E NOS LEVA, TAMBÉM, AOS ACORDES PERDIDOS NO TEMPO ONDE AS LEMBRANÇAS RESSOAM ENTRE MELODIAS E O SILÊNCIO.
ResponderExcluiraBRAÇOS COM TERNURA; jORGE
Jorge, amigo, camarada deste outono que nos deixa folhas com poemas, este texto veio do Brasil para cair aqui curtindo a terra da minha república sem fronteiras... é um amigo que ama a cultura e literatura galega... me comove a sensibilidade do Brasil, o talento de comunicar sentires, me comove... me move com, grata por tua presença, agora vou viajar para teu blog, teu espaço encantado, hoje andei a cavar mais um bocado em meu quintal, em breve sementarei... Abraços com carinho, Concha
ResponderExcluirOlá, minha querida amiga Concha!
ResponderExcluirMeu muitíssimo obrigado por seu imenso carinho!
Sinto-me invadido de um sentimento de vivíssimo contentamento por constatar - meu Deus, nem acredito - que meu poema cruzou o Atlântico e veio pousar em seu cantinho tão aconchegante e cheio de extrema beleza. Você nem imagina a insegurança que me invade quanto ao acolhimento por parte de seus amigos. Espero que eles venham a apreciá-lo. Não sei se consegui descrever bem o outono, visto que minha terra está no semiárido do Nordeste do Brasil; só temos o inverno (período chuvoso - que vai de janeiro a junho, isso quando não ocorre a seca) e verão (muito sol de julho a dezembro), então só conheço o outono de ouvir falar e pelas fotos ou imagens da televisão. Sou-lhe eternamente grato.
Um abraço em seu coração,
Oliveira
Oliveira, o teu poema merece estar em lugar de destaque, é um texto de um lirismo encantador, és um mestre das metáforas, evocas as imagens mais melancólicas e belas que um outono poderia sonhar, fico muito feliz com esta dedicatória, de novo obrigada meu querido amigo, abraços de carinho, Concha
ResponderExcluirDe repente deparo-me com esta lembrança de cinco anos atrás! Emocionei-me em ver meu "Outono" estampado diante de mim! Nem pensava mais nele! Veja só! Gratidão por acolher poema encabulado!
ResponderExcluirUm abraço em seu coração!
Esse texto é um de meus/seus tesouros... Grata por seu carinho e amizade sincera de coração... Abraços !!!
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