A resposta a essa pergunta é não, não podemos viver sem arte. Podemos talvez viver sem consciência da arte, sem termos consciência de criar, mas criar é inerente à vida.
A vida, tal como ela é, inclui a arte; a vida é arte. A arte está em todo o processo de vida. A combinação de dous códigos genéticos, de pares de cromossomas a se juntarem para criar algo diferente do que já existe em cada um dos indivíduos proporcionadores desses cromossomas, é arte.
Portanto é impossível viver sem arte, porque sem ela a vida não teria evoluído, nunca teria chegado a este estado no que nos achamos, em que somos capazes de conceber a arte. Com efeito estou a afirmar que a Evolução é um fenómeno de criação artística da própria Natureza.
O ser humano, ser que propende inatamente a ser natural, descobre a arte desde que nasce, descobre que pode criar, ser consciente de poder ser original; o ser humano não está no mundo apenas para imitar, para copiar, o ser humano está no mundo para criar...
Quase, sendo criativa eu mesma nesta afirmação, me atreveria a dizer que cada ser humano é o resultado da sua própria capacidade criativa, não se reduz a isso, é claro, há elementos, circunstâncias, que marcam as condições da vida que o indivíduo vive; ora bem, dentro desse campo limitado por forças sociais, económicas e mesmo éticas, o ser humano encontra o caminho para ser... O ser é, em si próprio, arte; ser tem a incógnita, a porta do desconhecido sempre aberta...
Nas culturas modernas a vida tem-se tornado tão artificial, tão afastada da Natureza, tão sem jeito (diria eu) que o ser humano tem que recorrer a arte para sobreviver ao pragmatismo que o consome... Somos pecinhas muito pequenas num mundo tão complicado ao tempo que tão insatisfatório, que necessitamos da arte para dar sentido a nossas vidas.
Neste sentido podemos dizer que a arte é como um remédio curativo para não sucumbirmos ante o tédio que nos produz, e falo naturalmente em termos gerais, desempenhar tarefas repetitivas que nada requerem de nossa capacidade criativa. Com certeza que nas culturas tradicionais, vinculadas aos ciclos da Natureza, também eram necessárias, e eram desempenhadas, tarefas repetitivas para o mantimento da vida nessas sociedades. Mas há uma diferença essencial, e é que nas culturas tradicionais estás tarefas, a ceifa, a maça do linho, a vindima com seu pisar das uvas... e por aí fora... eram realizadas como tarefas coletivas, e o coletivo, organismo diferente da suma dos indivíduos, era o que fazia destes duros trabalhos uma experiência única, uma experiência viva, criativa, irrepetível, e portanto artística... sem necessidade da presença de elementos qualificados como artísticos, mesmo que muitas vezes também estavam presentes...
Por exemplo durante a maça do linho, contava-me a minha mãe, uma pessoa tocava o violino, e durante a seitura (ceifa) a gente cantava junta, especialmente quando ia de uma leira para outra, desafiando uns ranchos aos outros, e o ramo de flores que se trazia para casa da última leira... lembro a meu pai com aquele ramo na mão, mostrando ao mundo que tínhamos acabado a seitura ao tempo que entre todos se ia improvisando a trova:
A seitura vai no cabo
e o cabo na cabeceira
acabamos a seitura
na leira da Fonteuzeira
A seitura vai no cabo
e o cabo na cabeceira
a seitura vai no cabo
e o amo vai na Ribeira*
Este nosso aminho hoje
tem-vos a cor da cereija
este nosso aminho hoje
sem o vinho não nos deixa
E o dia da malha eram enterrados na eira uns potes de ferro para que se ouvisse em todas as aldeias das redondezas o bater dos malhos... num ato de comunicação... Na hora de pisar as uvas a festa era tal que quase se poderia, muitas vezes, catalogar de orgia...
Concluindo, e voltando a ideia inicial de se podemos ou não viver sem arte, afirmo novamente que não, não se pode viver sem arte; pode-se viver sem consciência da arte. O modo de viver tradicional, que articulava arte e natureza harmoniosamente, fazia desnecessário ser consciente da presença da arte como elemento separado, mas permitia sentir os benefícios do processo de criação... Na nossa forma de vida moderna, da que eu me autoexcluo por continuar a me orientar na vida seguindo os princípios tradicionais, a vida tem-se tornado demasiado complicada, excessivamente técnica, e tremendamente solitária... E faz-se necessário ter a consciência de que mantemos algum espaço no que sermos criativos ou podermos sê-lo, ou polo menos termos a sensação de que podemos paliar o desprazer de viver vidas que não são criativas.
Concha Rousia
Galiza agosto de 2010
Este artigo foi escrito para a exposição do 9º Didascálico do Instituto Federal de Santa Catarina, Floripa, SC, Brasil.
Ribeira* (Era o lugar onde se ia para comprar o vinho)
Nas culturas modernas a vida tem-se tornado tão artificial, tão afastada da Natureza, tão sem jeito (diria eu) que o ser humano tem que recorrer a arte para sobreviver ao pragmatismo que o consome... Somos pecinhas muito pequenas num mundo tão complicado ao tempo que tão insatisfatório, que necessitamos da arte para dar sentido a nossas vidas.
Neste sentido podemos dizer que a arte é como um remédio curativo para não sucumbirmos ante o tédio que nos produz, e falo naturalmente em termos gerais, desempenhar tarefas repetitivas que nada requerem de nossa capacidade criativa. Com certeza que nas culturas tradicionais, vinculadas aos ciclos da Natureza, também eram necessárias, e eram desempenhadas, tarefas repetitivas para o mantimento da vida nessas sociedades. Mas há uma diferença essencial, e é que nas culturas tradicionais estás tarefas, a ceifa, a maça do linho, a vindima com seu pisar das uvas... e por aí fora... eram realizadas como tarefas coletivas, e o coletivo, organismo diferente da suma dos indivíduos, era o que fazia destes duros trabalhos uma experiência única, uma experiência viva, criativa, irrepetível, e portanto artística... sem necessidade da presença de elementos qualificados como artísticos, mesmo que muitas vezes também estavam presentes...
Por exemplo durante a maça do linho, contava-me a minha mãe, uma pessoa tocava o violino, e durante a seitura (ceifa) a gente cantava junta, especialmente quando ia de uma leira para outra, desafiando uns ranchos aos outros, e o ramo de flores que se trazia para casa da última leira... lembro a meu pai com aquele ramo na mão, mostrando ao mundo que tínhamos acabado a seitura ao tempo que entre todos se ia improvisando a trova:
A seitura vai no cabo
e o cabo na cabeceira
acabamos a seitura
na leira da Fonteuzeira
A seitura vai no cabo
e o cabo na cabeceira
a seitura vai no cabo
e o amo vai na Ribeira*
Este nosso aminho hoje
tem-vos a cor da cereija
este nosso aminho hoje
sem o vinho não nos deixa
E o dia da malha eram enterrados na eira uns potes de ferro para que se ouvisse em todas as aldeias das redondezas o bater dos malhos... num ato de comunicação... Na hora de pisar as uvas a festa era tal que quase se poderia, muitas vezes, catalogar de orgia...
Concluindo, e voltando a ideia inicial de se podemos ou não viver sem arte, afirmo novamente que não, não se pode viver sem arte; pode-se viver sem consciência da arte. O modo de viver tradicional, que articulava arte e natureza harmoniosamente, fazia desnecessário ser consciente da presença da arte como elemento separado, mas permitia sentir os benefícios do processo de criação... Na nossa forma de vida moderna, da que eu me autoexcluo por continuar a me orientar na vida seguindo os princípios tradicionais, a vida tem-se tornado demasiado complicada, excessivamente técnica, e tremendamente solitária... E faz-se necessário ter a consciência de que mantemos algum espaço no que sermos criativos ou podermos sê-lo, ou polo menos termos a sensação de que podemos paliar o desprazer de viver vidas que não são criativas.
Concha Rousia
Galiza agosto de 2010
Este artigo foi escrito para a exposição do 9º Didascálico do Instituto Federal de Santa Catarina, Floripa, SC, Brasil.
Ribeira* (Era o lugar onde se ia para comprar o vinho)
Concha Rousia
Publicado no Recanto das Letras em 17/11/2010
Código do texto: T2620215
Código do texto: T2620215
Concha, o blog está lindo e, gostei muito do texto. bjussss
ResponderExcluirCynthia, grata por tua pressença e carinho, bjs, a porta aqui fica sempre aberta, bjssss
ResponderExcluirConcha, li ouvindo Fred: com emoção de alma remoçada pela arte.
ResponderExcluirAbraços com carinho, Jorge
Jorge, gosto de ver como nos interessam, nos movem, as mesmas cousas... assim caminhar é mais facil, mesmo que não seja facil a andaina (que dizemos nós) nestes tempos... Um abraço, com carinho sempre, Concha
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