Mãe, pai, irmãs... segando o pão (centeio) |
Na infância sonhaste tanto, eras miúda mas cabiam infinitos sonhos em ti, então sonhaste, muita cousa com que se alimentar não havia, então sonhaste, não havia livros, mais isso já foi superado... Então sonhaste, sonhaste tanto que nem tinhas onde guardar tantos sonhos, a casa era pequena, e o mundo, o de fora do teu mundo, era desconhecido, e mesmo se poderia dizer que era inexistente, então sonhaste, com manterias diversos, alguns naturais, outros inventados... E ainda outros inexistentes, todos passavam a ser igualmente reais na tua fantasia...
Depois decidiste, que nem decisão foi, foi reação a uma necessidade urgente... decidiste enviar os teus sonhos para o futuro... Eras pequena e imaginavas que o futuro era imenso, desproporcionado, insondável... De cada sonho, guardas-te uma fotografia mental que nasceu em cores, mesmo num tempo onde a fotografia era em branco e preto, e agora aquelas fotos teriam que virar sépia...
Faltam alguns... |
E continuaste a sonhar, quanto fazias as tarefas da escola, sonhavas, quando acarretavas a água da fonte, sonhavas, estremecias-te cada vez que o caldeiro desbordava sua frialdade para os teus pés, ainda bem que sempre havia lume, fosse verão fosse inverno, e enxugar o calçado não demorava, sonhavas quando comias, e imaginavas um lugar no planeta onde houvesse plátanos, e imaginaste seu sabor delicioso até para a foto, sonhavas quando tinhas fame...
Lembras aquela conversa com Deus pela janela, gritando bem alto? Deus não sei se ouviu, mas os vizinhos todos sim, e ficou também na imagem sépia que hoje chega a ti entre lágrimas... A Deus pedis-te poucas cousas, pois não conhecias o mundo da matéria, pediste aceite, vinho, café... Lembras? Pediste a máquina de fazer dinheiro, porque imaginavas que os ricos a paravam de noite... 'por que param essa máquina? por que não se faz dinheiro sempre?' por que aos pobres nunca chega... Por que, por que...? Não lembras a resposta que te foi dada, pelo menos na memória, ora nem é apenas na memória que as cousas se perpetuam... E mesmo que lembrasses as palavras que te foram ditas, seguirias sem ser resposta...
Nessas fotos, que ainda guardas na cabeça, te julgarias pobre? Mas... eras pobre realmente? Tinhas muito menos do que necessitavas? Que necessitavas? Talvez nada que não tiveste necessitaste... Todo o mundo era parecido, não exactamente igual, mas ninguém era realmente desigual... Afortunada tu que não tiveste que guardar uma fotografia que te retratasse num contexto de opulência... E tu sem saber que gosto tinham os plátanos. Então, foste pobre? Nem respondas, porque talvez ainda o sejas hoje...
Não sabes se estás ou não nessa foto... |
Sonhaste tanto, tanto, e tudo foste enviando para esse futuro que chegaria quando tu fosses adulta, quando fosses grande... E agora chegaste a esse tempo, já és adulta, já estás naquele mundo ao que enviaste os teus sonhos, e que descobres? descobres que os sonhos já não estão, eles não esperaram por ti, eles não esperaram por ninguém, eles talvez nem chegaram, foi aí que as fotos todas se velaram, todas aquelas fotos guardadas ao longo desses anos todos... guardadas para nada...
O pior não foi descobrir que os sonhos não estão, que eles não te aguardaram, ou que mesmo se perderam no tempo, ou nesses caminhos, ou quem sabe as portas do futuro eram pequenas demais... Mas não, não, o pior não vai ser o que fazer com a mala de fotos, onde enterrar tanta imagem morta... Talvez queimá-las numa fogueira? talvez fazer barcos de papel que avancem ao invés da correnteza desse rio que te leva, talvez, talvez, talvez... talvez o pior seja pensar que se perdeu a infância...
Esta passou pela mão da Nerea... e tu sempre perto do pai... (Em andamento...) |
concha: tua alma me leva aos mundos ancestrais da poesia nativa, dos que viviam versando os próprios passos na caminhada... abs ternos no encanto do luar...
ResponderExcluirAlegra-me que assim seja, meu amigo querido, porque a minha alma habita os mundos ancestrais, sou nativa, sou indígena da Europa, levou-me tanto tempo descobrir isso... Abraços com carinho
ResponderExcluirEstas fotos que insitem nos resgatar o passado que queremos esquecer, saudades paralisadas. Seus texto nos fazem perder o folego com a cadencia lirica que usa na prosa. verdade
ResponderExcluirabraços
Concha, adorei ler o teu texto, fiquei nostalgica, viajei no tempo e revi-me em muitas das tuas palavras. Muito bom amiga, quando alguém consegue escrever sentires que tocam, para além dos próprios, os outros também.
ResponderExcluirTem um excelente dia!
oa.s
Pois é Sandrio, saudades paralisadas, só tu para encontrar a palavra exata, agradeço o carinho com que te aproximas de meus textos, adoro.
ResponderExcluirabraços
Oceano: 'Nostalgia' é outra boa palavra que casa bem com este texto, tu és mais jovem do que eu, mas talvez nosso mundo seja da mesma idade... ou até talvez seja o mesmo :)
ResponderExcluirAbraços e uma ótima fim de tarde e fim de semana para ti.
Concha