Hoje, como todas as terças, é dia de feira na Carvalheira de Santa Mínia. É neste espaço onde um dia eu me atrevi a mover todas as árvores apenas para escrever o meu haicai:
na carvalheira
movi todas as árvores
com o meu passo
Mas hoje, nem paro à feira, nem escrevo, hoje eu estou só de passo, a caminho de qualquer lado, ou de nenhures... Na primavera virei aqui comprar os pimentos de padrão para plantar no quintal onde agora deviam estar a crescer os nabos, mas eu esqueci que se sementam o 26 de Julho, sempre esse dia... todos os anos, toda a vida, todas as vidas até chegar a esta minha vida... Não, não sementei, também porque ainda os pimentos de padrão estão a produzir; logo que o frio venha e os leve, botarei a nabinha, o que importa se é tarde! se eu não os quero para criar cabeça, não, eu já não faço matança, nem portanto enchidos com eles, nem cebo o porco, nem nada...
Decidi comprar nabinha nova na feira, a semente quanto mais nova melhor nasce, como tudo... reparo agora em que a gente à minha volta na feira é quase toda velha, velha como eu, mesmo que eu nem tenha tantos anos. Uma mulher vestida de preto, tenta os queijos artesãos e pergunta a como anda o litro do mel, finalmente compra chouriços, talvez ela também não faz já matança... outra mulher mais jovem que a vestida de preto, anda a ver se compra alguma peça de roupa... um homem de fato escuro e guarda-chuvas pendurado às costas, cigarro prendido no beiço, entra no posto do polvo... Passa pola beira da moça que cura da caldeira e vai-se sentar numa dessas mesas longas para dividir com qualquer um que venha à feira...
Decidi comprar nabinha nova na feira, a semente quanto mais nova melhor nasce, como tudo... reparo agora em que a gente à minha volta na feira é quase toda velha, velha como eu, mesmo que eu nem tenha tantos anos. Uma mulher vestida de preto, tenta os queijos artesãos e pergunta a como anda o litro do mel, finalmente compra chouriços, talvez ela também não faz já matança... outra mulher mais jovem que a vestida de preto, anda a ver se compra alguma peça de roupa... um homem de fato escuro e guarda-chuvas pendurado às costas, cigarro prendido no beiço, entra no posto do polvo... Passa pola beira da moça que cura da caldeira e vai-se sentar numa dessas mesas longas para dividir com qualquer um que venha à feira...
A moça tirou da barriga da caldeira o prato de madeira, que metera para o aquecer, e começou a cortar os dous rabos de polvo para uma ração; as mãos desta jovem polveira tem já mestria com as tesouras, movem-as à velocidade do raio, talhadas finas que vão sendo colocando com arte para fazer parecer mais grande a ração; depois o sal, meio gordo, o pimento, o azeite... e para a mesa, onde já está o pão e o vinho... e os palitos para comer, jamais se usa garfo de metal, como jamais se bebe água, nem que sejas criança, o polvo na água incha e senta mal, todo o mundo tem que beber vinho... crianças também...
Mas hoje na feira não há crianças, por aqui já quase nunca há crianças... elas estão nessas escolas... essas escolas que as arrincam de nós... Aqui venho entender eu agora a ternura que sempre sentia quando passava por Lancaster, terra de Amish, em Pensilvânia. Nascia em mim aquela vontade de ficar imensa... lá passei muitas vezes, a última quando estava gravida, acho que essa vez fui para poder sentir o ritmo da vida, o ritmo do mundo biológico, e a calma... sem carros de motor, sem ladroes de tempo... Sempre admirei neles que não permitem ao Estado lhes ocupar as mentes das suas crianças enquanto são miúdas... Só quando elas estão formadas, os próprios pais os mandam ir conhecer esses outros mundos, dois anos de aventuras e a seguir a decisão de voltar ou ficar nesses outros mundo... Ora para mim, para nós, é tarde... 'Um dia eu vou vir viver aqui com eles... amola-me um bocado a religião, mas eu acho que isso se aprende...'
Hoje com a lembrança dos Amish do Condado de Lancaster, continuo o meu caminho; dedico uma olhada ao homem do fato escuro, que continua com o guarda-chupas pendurado, reparo em que anda já comendo as últimas talhadas de polvo, enquanto que o tempo vai comendo os últimos raios de sol, os últimos raios no entardecer da nossa cultura, do nosso povo... connosco ainda dentro, respirando, comendo polvo, comprando nabinha, tentando os queijos, distraidamente... como se não notássemos como a areia da desolação vai engolindo os segundos contados que nos restam...
Detenho-me no meio da carvalheira, observo as copas dos majestosos carvalhos, como se eles fossem o meu único universo, queria parar o mundo, baixar aqui ou cair dele, como diria Eduardo Galeano, mas algo me prende... Serão as raízes dos carvalhos? que eu imagino a salvo, sempre a salvo lá no ventre da Terra... Decidi que hoje vou ir plantar landras, sei que isso não me vai curar, mas por algum lado necessito fugir destes finitos que me coutam as terras da alma... Hoje sinto que não caibo no mundo, sinto como ele se cinge sobre mim e me aperta, depois talvez eu rebente em poemas ou em lágrimas ou em nada...
Quando entro no carro noto como o meu pé se quer deixar cair com a vontade de correr, a cabeça não deixa, nao, a cabeça ainda nao deixa... Ligo a música, volume alto, muito alto, como se fossem os tambores vivos da África a falarem, necessito amortecer os ruídos do silêncio em que somos devorados, porque neste nosso thriller falta a música... e eu necessito um leito de som que acolha o meu grito... não sei se de guerra, não sei se de dor, não sei se de desesperação, talvez de tudo misturado... Nesse grito, enquanto os meus olhos se embebedam de horizonte e eu permito a meus olhos chover sobre o meu infecundo colo, nesse grito entrego a dor que emana de um povo, a tribo de dentro, e nesse instante eu compreendo por que na Galiza morre tanta gente jovem nas estradas...
P.S.: A harmonia que encontrei em Lancaster, nesse mundo Amish, procurei-a também no povo Cherokee, nas beiras das Blue Montains, em Noth Carolina, ora esse povo estava visivelmente quase tão destruído quanto o meu... era inverno e ainda hoje, se fecho os olhos, posso penetrar no fume que saía pelas chaminés das casas prefabricadas imitando um mundo que não era...
Concha: emocionei-me... havia acordaado perdido entre achados; sem entender minha direção... vago e errante, aqui me descobri: um passarinho querendo ser folha do carvalho no medo de não encontrar seu ninho... Lutamos, sonhamos... Muitos nos sentem como se fóssemos a inspiração; não compreendo que nossos corpos carregam a transpiração da Terra e sente com ela anseios , dores, sonhos e agonias... Meu carinhoso e terno abraço, na sombra de um carvalho; jorge
ResponderExcluirJorge, meu procurado irmão do mundo para além dos mundos, obrigada por atender, por atender, por meter-te a sentir comigo, a dor que se expressa, enquanto se expressa não mata, fortalece, ora, é preciso quem escute, porque os gritos em solidão no carro só me evitam ter que ir a psicoterapia (desculpa eu brincar com a nossa profissão rsrs) Abraços com ternura e gratidão por ouvir o sentir, com meu carinho, Concha
ResponderExcluirCARLOS: SABES QUE GOSTO DE GUARDAR PERTO AS TUAS PALAVRAS, COM CARINHO:
ResponderExcluirCarlos Durão:
raio, como escreves! perco-me (com prazer!) na tua floresta... os meus pimentos de Padrão: onde vai que eles foram comidos (este ano eram pequenos, mas tu não sabes como é este clima las ilhas britânicas...); o polvo à feira aqui só nalguma "romaria" galega (este ano foi em Hyde Park...), mas o vinho, ah esse sim que é inerente às nossas festas (e mailo porco... desculpem os anti-porco...); bom, deixo-te, que tenho que fazer limpeza na minha horta (estou encarregado da fogueira "comunitária"...); abraço!
PALAVRAS AMIGAS PARA DIVIDIR AQUI...
ResponderExcluirRicardo Costa Arribe
Sinto ese mesmo desasosego do entardecer da nosa cultura, vivido por ti na feira. Agora me dou conta que hai tempo que non acudo a ese tipo de eventos e lugares onde se me fai consciente ese ocaso de min mesmo.
Poidera ser que sertir-se custodio dun mundo que agonía estivera detrás do desasosego... mas quizais non se trata de conservar un museu ... agora penso que o que debemos é ser custodios do desasosego mesmo, por ver se está aí para traer-nos algo novo que inclúa o mundo vello que herdamos.
Obrigado.
Concha Rousia ...Ocaso de mim mesmo, é isso mesmo Ricardo... Alegra-me isso que dizes, pois sim, somos custódios do desassossego, pois se tem que acontecer tem que ser visto e narrado... e aguardar que o novo possa ser recebido... Obrigada a ti, abraços, vou levar as tuas palavras para o meu blog... (AQUI)
PALAVRAS DO MEU QUERIDO AMIGO MANUEL:
ResponderExcluirManuel Iglesias
Fui lá ler por segunda vez... Que beleza... Tu me transportas com os teus escritos, com as tuas descrições, aos anos 40... Lembro-me quando acompanhava os meus avôs às feiras de Caldas ou de Padrão... As mulheres vestidas de preto... ( o eterno luto das nossas mulheres)... O homem de guarda-chuvas pendurado nas costas... ( também costumavam fazê-lo com o cajado)... o polvo à feira... as carvalheiras... Mais de setenta anos depois! Aperta!