O que enche o meu saco...
(Das cartas sem destinatário)
Sentada frente ao mar... 'Esse caminho' como poetizou nosso Celso Emilio. Decidi averiguar que levo no meu saco. Adoro misturar mundos, misturar dentros, misturar foras. O primeiro q
ue vi foi um aviso a me alertar: Olho, menina, deverias estar fazendo outras cousas...!! Ahhhh como eu odeio 'deverias', eles me tratam como se eu fosse criança, mas eu sou esperta desativadora de 'deverias'... Então fiz como que não via e segui entrando no saco, que está carregadinho, pesado, é um saco que comprei no Ceará, no mercado dos artesãos em Fortaleza. Este saco é quase a única coisa que consegui comprar nessa minha derradeira viagem, nem sequer consegui um chip da TIM, mas consegui o saco, ele bateu nos meus olhos dizendo: Sou teu! 20 Reais, preço é importante para as pessoas que teceram o saco e para mim, indígena entre indígenas.
E agora venho descobrir aqui ante esse imenso olhar azul do Atlântico, que o que mais levo no saco são lembranças, este saco tem as cores dos sacos-do-pão, quando em grão o acadávamos o dia da malha, para que os homens os acarretassem ao lombo para vazar no imenso arcaz... Depois seria também nesses mesmos sacos que iria ao moinho. Vou deixar o moinho fora do meu conto ou não termino aqui hoje... Ahhhh as noites no moinho... Essas nem caberiam em mil tardes de lembranças com esta... 'Vai varrendo', dizia o moinheiro, tu varrias e quando ele dizia: 'de tudo!' Paravas, e a farinha passava a ser a do vizinho... A roda de pedra não pode moer sem grão, nem parar até o final da muinhada*, um grão irmana-se com o outro.... Bom, eu não vi grão quando andei pelo Ceará, mas vi cana, e vi homens com fouces pela beira da estrada, e vi meninos pela beira da estrada... E vi que a estrada não era vista pelos políticos, meu amigo angolano ia colocando as palavras à nossa experiência... É, levo no saco meu amigo Afonso, meu irmão de Angola, levo os meninos da beira da estrada, levo a estada, mas quero ir alem a saudade, ver o que mais eu levo...
Levo duas agendas, uma deste ano (cor azul) e outra do passado (cor laranja) tenho contas atrasadas, números de amigos, é, eu já não confio no telemóvel..., nunca devi confiar... Levo cartões de professores, de escritores, de músicos, de atores de teatro, de um fotógrafo do Sertão, ao fotógrafo vou escrever, talvez ainda hoje, foi uma alma que reconheci, mesmo sem tempo.... Levo as flores com as que ele me fotografou, as flores de Guaramiranga que são gigantes... Levo um cartão do metro de madrid, às vezes pergunto-me para que guardo certas cousas... Mas eu sou de guardar, levo papelzinhos pregados com palavras passe para wi-fi de hotéis, de restaurantes, de casas de cultura, de bares, etc. de vários continentes...
Levo um poema rascunhado num envelope usado, levo a tampinha do rádio do carro... E agora vou tirar o resto tudo para fora e vou, sinceramente, continuar.... Levo meia dúzia de canetas, dois telemóveis, um controle remoto da garagem do meu consultório, os documentos do meu carro, meu carro cor 'acuamarina'... Levo também uma cheia de chaves, algumas não lembro que portas abrem... Uns óculos escuros para proteger meus olhos do sol, creme dental e uma escova, um penso, vários pendrives, uma pedra triangular, escura, com uma beta alaranjada que a atravessa... Levo poemas impressos de meu último recital, uma livreta com poemas rascunhados que um dia esquecerei... Um trevo secando no meio de uma outra livretinha, junto de uma foto de meus pais, sentados, frente a casa em que nasci.... Um dos telemóveis interrompeu meu mergulho no saco, tenho de ir agora, me esperam, guardo tudo, incluída a máquina de fotos que tinha sobre a mesa, depois meterei o ipad no que ainda escrevo, e junto meterei o mar, com barquinhas e gaivotas incluídas... E já agora, meu bem, vejo que não sei o que fazer contigo, poderia meter-te a ti também, mas para isso teria que tirar tudo pra fora... porque tu hoje, tu sozinho, encherias meu saco... Então, por mais um dia, vou-te levar sob as dobras do meu blusão, amanhã, sim amanhã, eu decido...
Concha Rousia
Muros 17 de 7 de 2012
(A música é de hoje: 19 do 7 de 2012; não levava no saco o dia 17) http://www.youtube.com/watch?v=-FsWe2sc7m
Muinhada*
s. f.
(1) Reunião que se faz no moinho enquanto se aguarda pola moedura.
E agora venho descobrir aqui ante esse imenso olhar azul do Atlântico, que o que mais levo no saco são lembranças, este saco tem as cores dos sacos-do-pão, quando em grão o acadávamos o dia da malha, para que os homens os acarretassem ao lombo para vazar no imenso arcaz... Depois seria também nesses mesmos sacos que iria ao moinho. Vou deixar o moinho fora do meu conto ou não termino aqui hoje... Ahhhh as noites no moinho... Essas nem caberiam em mil tardes de lembranças com esta... 'Vai varrendo', dizia o moinheiro, tu varrias e quando ele dizia: 'de tudo!' Paravas, e a farinha passava a ser a do vizinho... A roda de pedra não pode moer sem grão, nem parar até o final da muinhada*, um grão irmana-se com o outro.... Bom, eu não vi grão quando andei pelo Ceará, mas vi cana, e vi homens com fouces pela beira da estrada, e vi meninos pela beira da estrada... E vi que a estrada não era vista pelos políticos, meu amigo angolano ia colocando as palavras à nossa experiência... É, levo no saco meu amigo Afonso, meu irmão de Angola, levo os meninos da beira da estrada, levo a estada, mas quero ir alem a saudade, ver o que mais eu levo...
Levo duas agendas, uma deste ano (cor azul) e outra do passado (cor laranja) tenho contas atrasadas, números de amigos, é, eu já não confio no telemóvel..., nunca devi confiar... Levo cartões de professores, de escritores, de músicos, de atores de teatro, de um fotógrafo do Sertão, ao fotógrafo vou escrever, talvez ainda hoje, foi uma alma que reconheci, mesmo sem tempo.... Levo as flores com as que ele me fotografou, as flores de Guaramiranga que são gigantes... Levo um cartão do metro de madrid, às vezes pergunto-me para que guardo certas cousas... Mas eu sou de guardar, levo papelzinhos pregados com palavras passe para wi-fi de hotéis, de restaurantes, de casas de cultura, de bares, etc. de vários continentes...
Levo um poema rascunhado num envelope usado, levo a tampinha do rádio do carro... E agora vou tirar o resto tudo para fora e vou, sinceramente, continuar.... Levo meia dúzia de canetas, dois telemóveis, um controle remoto da garagem do meu consultório, os documentos do meu carro, meu carro cor 'acuamarina'... Levo também uma cheia de chaves, algumas não lembro que portas abrem... Uns óculos escuros para proteger meus olhos do sol, creme dental e uma escova, um penso, vários pendrives, uma pedra triangular, escura, com uma beta alaranjada que a atravessa... Levo poemas impressos de meu último recital, uma livreta com poemas rascunhados que um dia esquecerei... Um trevo secando no meio de uma outra livretinha, junto de uma foto de meus pais, sentados, frente a casa em que nasci.... Um dos telemóveis interrompeu meu mergulho no saco, tenho de ir agora, me esperam, guardo tudo, incluída a máquina de fotos que tinha sobre a mesa, depois meterei o ipad no que ainda escrevo, e junto meterei o mar, com barquinhas e gaivotas incluídas... E já agora, meu bem, vejo que não sei o que fazer contigo, poderia meter-te a ti também, mas para isso teria que tirar tudo pra fora... porque tu hoje, tu sozinho, encherias meu saco... Então, por mais um dia, vou-te levar sob as dobras do meu blusão, amanhã, sim amanhã, eu decido...
Concha Rousia
Muros 17 de 7 de 2012
(A música é de hoje: 19 do 7 de 2012; não levava no saco o dia 17) http://www.youtube.com/watch?v=-FsWe2sc7m
Muinhada*
s. f.
(1) Reunião que se faz no moinho enquanto se aguarda pola moedura.
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