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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

O medo

Remedios Varó

Há momentos em que o medo nos assusta, nos domina, nos dirige, nos orienta, nos leva ao colo, ou debaixo da sua asa, podemos dizer até que nos protege, cuida de nós, não permitindo-nos que ignoremos determinadas adversidades, certas ou não, da vida. Aí o medo se converte em algo íntimo com quem falarmos, alguém que nos dá a mão, mesmo que seja uma mão áspera, dura, mão que por vezes queima... Aos poucos vamos querendo soltar essa férrea mão, ainda achando que não vamos poder, pensamos que é ela, essa mão gigantesca do medo, a que nos prende... E de repente um dia descobrimos que o medo nos soltou, não está, nos abandonou, sentimos que não conseguimos ter mais medo ao medo. Inicialmente isso nos confunde, não sabemos se assustarmo-nos ou aproximarmo-nos da vertigem de imaginar voar... Sim, essa perda do medo a ter medo é parecido com a perda do medo à morte, logo de a ter concebido e assumido, dentro de nossa limitada capacidade de conceber a vida.

Depois disso podemos dizer que apenas aquela pessoa que teve medo e o venceu, logo de se ter sentido inúmeras vezes vencida, sabe o que é não ter medo... E agora que eu já não estou, que eu já não existo, que eu já desisto de atar a mim meu medo, de marcar o mundo com meu olhar sombrio, quero ser apenas sol ou sombra ou prado que recebe o gado a pascer a insistente relva, quem me dera ser isso, relva que insiste sem insistir... Por que em mim tem que ser tudo tão consciente? Tirar de tuas palavras já me cansa, sempre me cansou, mas agora quero que um deus te faça nascer mais voluntário, que as nuvens te reguem e eu te pasça sem esforço, como essa vaca de olhar pacífico e vontade mansa, ou talvez nem tão mansa. Quem sabe o que a vaca pensa...

Sempre me perguntei se as vacas teriam fantasias, sonhos... De miúda eu ia para o monte guardar nosso gado, que mágoa hoje em dia as crianças perderem esses mundos de silêncios e pássaros... Porque encher as horas com a próprio contido da cabeça no meio de um mundo verde, de fria chuva e neve, de lume e merenda... Ahhh a merenda! Aliviava as longas horas do monte mesmo que continuavam a ser duras. E então chegava a hora de voltar para a casa, as vacas voltavam com a barriga cheia, e eu voltava com ânsia de companhia, com vontade de contar qualquer cousa que me acontecera no monte. Lembro que enquanto caminhava detrás das vacas sempre me perguntava se elas, as vacas, voltariam para a casa com algum tipo de pensamento, desejo, sonho até... As paridas, com o úbere ateste de leite, iam sempre na frente quase querendo correr, elas iam sentindo como os seus filhinhos as aguardavam. É por isso que hoje me pergunto se elas também passariam medo...

Enquanto me perguntava sobre os possíveis medos das vacas lembrei aquele dia que andava eu na Veiga, nesse momento eu não pensava em lobos, e foi aí que a cadelinha 'Moura' que era criança, como eu, mas ela não sabia que eu era, se meteu entre os meus pés... Assustei-me, ela era a minha guardiã e vinha procurar proteção a mim... Compreendi que o seu medo era maior do que o seu valor, e olhei para as vacas na procura de algum sinal, elas estavam cheirando o ar à sua volta e botaram logo a andar apressadamente a caminho de casa, eu fui atrás delas, a cadelinha Moura não se afastou de mim até chagarmos à aldeia, eu peguei no rabo da Toura, aquela vaca galhada que mudou de nome porque na nossa casa já havia outra com o nome de Marquesa, que ela trazia de seu anterior amo, e a Toura tirou por mim, aquele contacto com o animal deu-me valor de gente, sabia que o lobo ia polas leiras, acompanhando o nosso andar sem se deixar ver; os meus pelos todos do corpo estavam arrepiados; eu sabia que o lobo tentaria antes apanhar a cadelinha Moura, e ela também sabia...

As vacas não diminuíram a sua marcha, nem se pararam a apanhar qualquer bocado nos pastos das beiras do caminho, como era o seu costume, sinal de seu apuro, sinal de seu medo. Sim, elas tinham medo, a elas também lhes dera o ar do lobo, como me dera a mim, e eu senti-o mais físico do que sinto o ar da solidão ou da tristeza, senti-o como sinto a fame, senti-o no corpo e senti-o na alma. E agora tenho que pensar que todas as minhas vacas já foram mortas, inconscientes de ter guardado medos ou rancores, elas morreram e eu sigo levando em mim seus nomes para sempre...

Lembro quando a última foi vendida, a dor intensa da despedida; porque as vacas, para quem não conheça, para quem não saiba, e não seja da índia, direi-vos, que as vacas para nós eram, são, como membros da família. Ele é verdade que quando a necessidade obrigava a vender alguma delas, havia que vendê-la, mas se morria era enterrada na terra, como o ser querido que era. E agora sinto o muito que eu me tenho descivilizado desde aquele meu mundo... Isso quase me quer dar medo, se me deixasse levar sentiria medo, mas não quero, não me quero deixar guiar por medo nenhum hoje, nem que seja verdadeiro...

Concha Rousia

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