Remedios Varó |
O que me importo com entregar o corpo à Terra, depois que tanto levo entregado?
É outono, tempo de entrega, de retorno ao chão, à poeira, tempo de dar à Terra o que da Terra é... Olho o castanheiro do Manoel, o meu vizinho Manoel que a cada ano decota um bocado o seu castanheiro para que saiba da sua pertença... e em recompensa a majestosa árvore deita agora no mole chão, com generosidade, as douradas castanhas... Castanhas para comer cruas, assadas, cozidas, com leite, no caldo... Ahhh o caldo de castanhas... Daqui eu posso voar ao infinito da infância, lembrar as ceias, e as sobre-ceias de castanhas que sobraram para o jogo das rebirindainas, no que quem acerta com o número que se esconde na mão, leva todas as peladas que cabem nessa mada... Eu era pequeninha quando brincava às rebirindainas... E agora sou muito menor, e limito-me a contemplar o pouco que me resta, já tudo foi para a Terra..
O primeiro em ir foi o pai, naqueles anos em que a língua era proibida e morava nos céus das bocas sempre silentes na presença de estranhos... O estranho mais estranho era o senhor inspetor que visitava a escola... Com seu fato de senhor inspetor, com seu bigodinho de senhor inspetor, e seu não-sorriso de senhor inspetor... Ora isso eu não quero mentar hoje... Hoje eu quero lembrar o meu pai, o meu pai que fazia banda desenhada em galego, sempre em galego, nos anos em que Castelão (que não era labrego como era o meu pai) escrevia o seu 'Sempre em Galiza'. Fica em mim aquela frase: 'Ao homem comem-no as moscas'. Nunca esquecerei meu pai desenhando um mundo que me resgatasse da morte que vinha antes do fim... um fim onde tudo comem as moscas, para isso é que elas existem...
Depois eu entendi que tinha que levar sempre na boca a Terra, mesmo que fosse apenas na palavra, na que sementar a língua... Não, no outono não se sementa, eu sei, no outono se transplanta, se rega, ou mesmo se nasce... eu nasci no outono, o mesmo dia que nascera o meu pai, e o mesmo dia que nascera a mãe do meu pai... em outono nasceu minha filha e nascera também a minha mãe, e foi também no outono que tive que entregar à Terra o seu corpo, dois dias antes do meu dia de anos... Então, eu conheço meu tempo de entrega...
A cada ano eu escolho o que entregar à Terra... Sim, eu sempre entrego flores para os que me vivem no cemitério, entrego dias, entrego noites, longas noites sem contos, sem chancas de pau, sem pão no forno polo que esperar para ser cozido... Entrego um anaquinho de esperança para que renasça... Mas este ano sei que tenho que entregar mais alguma cousa, algo simbólico, algo que me doa ao ser arrancado de mim, sei isso, não sei porque sei, mas sei...
Então eu vou entregar um touça, um bosque de carvalhos... Fica em Pena-Longa, na ladeira da Pena-Lapa... Acho que nunca fui à lenha a essa touça, só na fala é que me foi entregue, e na conversa em que se me entregava já se me tirava... 'essa touça um dia vai-se perder'... Ora tu, filha, lembra: fica entre uma do tio Manoel Trigo, que segue do lameiro do Gandaina que arranca desde o caminho, na parede está o marco... E do outro lado da nossa é dos da Fonteuzeira, e a touça de por cima é do Camilo da tia Maria, sempre podes recorrer a eles para saber onde fica a nossa touça... É, eu sabia, mas o Camilo morreu, dois dias depois de morrer a minha mãe, ele morreu, e foi também entregue à terra no mesmo outono... E então eu este ano decidi entregar essa touça à Terra, já não quero saber onde ela fica, não preciso saber, entrego-a ao ser comum... E dói, mas dói no mancado... Porque, o que me posso importar eu com entregar a touça, o meu bosque de carvalhos, eu que já entreguei o corpo da minha mãe?! Eu que já entreguei...
Concha Rousia
Concha Rousia
Adoro o Outono, também o sinto como tempo de entrega, de silencio de comunhão com o nosso "eu".
ResponderExcluirGostei muito do texto.
Boa semana, abraço
oa.s
silêncio... depois leio com mais calma exige...
ResponderExcluirPois é Oceano, tempo de comunhão, de silêncio... Obrigada pela tua carinhosa presença.
ResponderExcluirUma boa semana para ti, abraços desde a Galiza
Concha
Sandrio, nesse silêncio, deixo um abraço de gratidão para ti, meu amigo, bjs
ResponderExcluirÉ .... tempo de entrega ...texto reflexivo .... pbéns ... abçs
ResponderExcluirPois é, Adilson, é um texto reflexivo, a entrega requer reflexão, obrigada pelo comentário e visita, abçs
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