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quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Nas escadas



Escher
Há uma fotografia nossa nas escadas, como nessas casas americanas atestes de retratos na parede do lado, esta foto é tua e minha, é uma foto que desapareceu de um álbum inexistente, mas é uma foto que foi tirada, permite-me obviar o nome da fotógrafa, mas nem tudo foi sonho, embora eu já sonhei a fotografia de mil maneiras diferentes, em cores, em branco e preto... já lhe coloquei inúmeras molduras, já a vi pendurando em muros de casas que nós, mortais poetas, habitávamos com os nossos corpos... 

E eu, mesmo sabendo que tu não gostas de fotografias, te senti pertencer a esta, te entregar à imagem, te dár a mim na foto, para sempre, mesmo que sigas sem gostar de fotos, talvez foi por isso que esse meu álbum, embora mental, decidisse libertar essa foto deixá-la perder-se, talvez a minha consciência, que te quer livre, como tu és, que te quer bonito, como tu és, que te quer... tenha algo a ver com essa libertação tua, e te entrega ao voo desse vento Norte, onde morarão sempre os poemas e os versos amantes de outros versos... e da nossa fotografia, e quem sabe também a dos nossos filhos, a das nossas filhas, a do jardim que nós plantamos, no abandonar todos os medos... que quando se aproximam ocultam tudo com sua sombra, mesmo sendo pequenos eles sabem enganar os olhos... 

É por isso que eu os fecho agora e passeio em silêncio pelo momento da fotografia na que tu, afincado de costas na varanda, permaneces um degrau mais baixo do que eu para te igualares comigo, ou talvez fui eu que me subi para ser mais alta, eu sempre pensei que debia ser mais alta do que sou, é por isso que desde sempre eu construo escadas, e guardo-as em imagens colectáveis, como guardo esta na que ficamos juntos, compenetrados, nem subimos, nem descemos, ficamos, tu nos meus braços, eu nos teus, eternamente ficamos, eternamente nas escadas.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Silhueta Vazia



Essa silhueta não sou eu, essa silhueta que recortas com os teus aguçados olhos, não sou eu... Sim, as formas são as minhas, não renego nem das curvas nem das ondas e nem dos ângulos que eu tenho. E reconheço a mornura da pele que as envolve, mas não sou eu lá dentro. Porque eu sei quando eu sou, eu sei quando eu estou, e quando não...

Onde estou, não sei, talvez esteja nalgum lugar desse território que me pertence, mesmo velho, roto, ou esfarrapado, que tu sempre confundes comigo. Talvez ande nalgum lugar desse corpo... Penso se será nos pés que ando, afinal se alguém sabe de andar são eles, os pés, mas não, não, hoje não ando, os meus pés levam séculos parados, como se eu fosse uma árvore... Andarei logo em meus peitos? Acho que neles poderia caber, como cabes tu quando te perdes, mas não, neles também não estou. Procuro no ventre, nas coxas, no sexo, nas axilas, nas mãos... e nada, nada de mim acho...

Onde será que eu estou? Onde foi que eu me meti? Penso e penso e penso e de repente descubro o meu presídio! Eu fui presa por mim, presa em meu próprio crânio... Sou apenas pensamento. Então devo ser eu quem me liberte. Mas antes deveria averiguar por que me encerrei, por que me encerrei...?!

Lembro que entrava para refugiar-me da fria chuva das tuas palavras quando me gritavas... Depois fui usando mais e mais esse lugar para esconder-me sem que notasses que me tinha ido. Aos poucos imagino que fui relacionando estar com aconchego, com segurança, com paz, e até com silêncio... E fui usando a cada dia mais esse refugio, mas de tanto usá-lo queimei a relva com meus passos, agora tenho um foxo no chão de tanto passear mecânico... O fojo é tão profundo, tão escuro, que quase nem eu consigo ver-me. Será por isso que demorei tanto em encontrar-me?

E agora estou aqui enquanto tu continuas a falar com essa silhueta... Pergunto-me se isto será como estar morta. E finalmente pergunto-me se será que consigo sair desta.

Concha Rousia

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Queimar dinheiro

No meu quintal...
"Ganhar ganha-o qualquer um, o importante do dinheiro é sabê-lo gastar"

Essa foi uma lição de economia que sempre me repetia a minha mãe, sem especificar nunca o que com essa frase queria dizer. Era assim que falava o avô da Fonte-uzeira, o pai José António, que regressara da Califórnia com três cousas: As mil e uma noites, um relógio de ouro, e um fato riscado. Meu avô não era gangster, mas aquela era a moda de começos do século XX. O avô trouxe também dinheiro para agrandar seu capital, na altura era solteiro, depois casou e teve três filhas às que dava o primeiro almoço da manhã na cama enquanto dizia: 'vou acomodar os meus três porquinhos'. Com o dinheiro que juntou nas minas de ouro da Califórnia, onde ao entrar já o suor lhe corria em fio face abaixo, comprou capital em Tosende e em Guntim, aldeias próximas de Covas, onde ele vivia, e onde depois nasceu a minha mãe, e ainda depois nasci eu... A mim chegaram essas terras que o avô comprou, não chegou o relógio, nem o livro, nem, naturalmente, o fato riscado; ora disso há quantos anos, o avô morreu antes de eu ser concebida...

Como me concebo hoje, herdeira desses mundos, e enquanto penso nisso... Escuto a chuva... Água e Terra a se misturar; o sol, que agora se esconde, será quem venha intermediar nesta batalha no escuro amanhecer. Escrevo com os olhos fechados para melhor ouvir o som das pingadas nas telhas, tenho tantas tarefas a chamar por mim que não acerto a entender o que me falam, todas me reclamam à vez... A chuva apaga todas as vozes excepto a do meu desejo: tomar banho, tomar banho como se o tempo não existisse, como se morresse com a perda do relógio que eu devia ter herdado como herdei o jeito de pensar no dinheiro...

Sem medir o tempo vou para o quintal, tomo banho com água do céu como tomam as árvores, sei que um dia eu aprenderei, como elas, a não permitir que nada me arranque de minha paz, de minha Terra, do Ser plantado em mim. As folhas da macieira e o pessegueiro decoram de vermelhos diversos e de dourados o verde tapete à sua volta... A melra anda por perto, à espreita, a melra sempre anda por perto porque ela noutro tempo foi gente... Quando miúda este lugar teria sido um paraíso de dinheiro, cada folha com sua cor, com sua tonalidade, seria uma nota de diferente valor, depois quando brincássemos ao jogo das tabernas, e eu fosse a taberneira, todos me entregariam um folhinha dessas por suas invisíveis consumições, o único real, palpável, era o dinheiro, eram folhas da macieira ou da silveira, ou ainda outras redondinhas e ternas que nascem nas paredes e que chamávamos de pachins...

Hoje, depois deste momento no quintal, terei que ir ao banco pagar a contribuição (imposto pola casa e o quintal) vou pagar por ter esta terra cheia de folhas, claro que aqui há muitas mais folhas do que notas no banco, muitas mais das que eles me vão cobrar, desejaria apanhar umas quantas e levar-lhas ao moço do banco, sorrio, à vez que vejo agora aparecer o arco-da-velha lá cara Bastavales... Se tivesse tempo iria à procura do lugar onde esse arco-íris toca a terra, sei que lá fica enterrado um tesouro, e com isso sim que podia impressionar ao do banco, muito mais do que com estas folhas que para a joaninha e o escaravelho são agora casa, refugio nesta hora de chuva fresca e madrugada... O senhor do banco leva gravata riscada, não sei por que sempre é assim sua gravata... Leva também fato de homem-que-trabalha-no-banco, muito diferente de como eu imagino o fato riscado do avô, que venceu a todo homem que o desafiou a uma 'queda'... Nunca, até o instante de escrever estas linhas, eu percebi por que se chamava uma queda... Mesmo que sempre se me explicou que se tratava de fazer cair o outro homem no chão, o avô era um homem ímpar... Ele não gostava das 'quedas' mas era provocado e não se acobardava porque era um homem de muito poder...

Acho que este homem do banco, com sapato fino, jovem como era o avô naqueles anos moços, sim se acobardaria... Hoje está sentado, sem grandes desafios, com certeza é casado e mesmo sendo jovem já tem, apostaria eu, filhos, dous, parece tão clássico... Fora do balcão com o que ele se protege, a seguir de mim há um homem sem idade, terá os meus anos, mas não sei em que grupo colocá-lo... Parece um artista, os cabelos estilo Einstein mas ainda com cor ruiva, roupas de pessoa que anda a procura de algo mas não de que os demais gostem de seu gosto, botas confortáveis, desportivas mas sem serem caras... Não para de caminhar enquanto aguarda, nervoso, pergunto-me se será um dos muitos que este mês perdeu sua casa por não poder pagar a hipoteca, ele tem cara de pagar hipoteca, também tem aspeto de se estar divorciando, talvez vai ao bando especificar quando dinheiro quer passar para os filhos...

De novo penso que havia muita mais riqueza quando eu brincava com as folhas da macieira a serem notas de distintas quantias, os bolsos do vestido sempre atestes de quartos, por isso não posso dizer que eu fui pobre... Porque levava vestidos todos os sonhos, para além da certeza de que eu encontraria a Cabrita d'Ouro, mesmo sem necessidade de seguir o arco-íris para a achar, porque a Cabrita fica nos nossos montes, se me esforça-se ainda seria capaz de ouvir como chama por mim, como ouvia quando era miúda e apanhava folhas como estas que hoje nem apanho... Hoje o dinheiro perdeu seu  valor real... Que diferente é do de antes, lembro o dia que encontrei uma moeda de 5 pesos (25 pesetas) orgulhosa corri a meu pai, aquilo dava-lhe a ele para 5 macetes de celtas, meu pai sempre se negou a fumar peninsulares, que custavam só 3 pesetas, eu na altura não entendera o verdadeiro significado daquilo... Hoje parece-me que foi um grande sacrifício, um prezo por seu símbolo, como eu pago a quota da AGAL, e por causa disso a imagem de um guerreiro celta desenhado em azul fica tatuado na memória dos meus olhos...

Como são importantes os símbolos... Tanto ou mais do que o dinheiro, que também é apenas um símbolo, aqui tenho que lembrar a tia Júlia, a que meu pai trabalhava as terras porque ela não tinha homem, tivera um filho de solteira mas fora-se para a Venezuela e nunca mais voltou. Adilo chamavam-lhe... Ouvi tanto falar nele que também sinto que o conheço como conhecia a tia Júlia. A tia Júlia um dia decidiu acender o lume usando notas verdes de cem pesetas, para que logo digam que as cousas verdes não ardem... O meu irmão ainda chegou a ver um naco da nota queimada na lareira da casa da tia Júlia, eram aquelas casas que tinham toda a vivenda numa única sala, com o lume no lugar do lume, com a cama no lugar da cama, a selha da àgua no lugar da selha na janela, e uma mesa de madeira de cerejeira...

A tia Júlia tinha cada olho de sua cor e diziam que por isso tinha a vista forte e podia botar o mal de olho, era prudente fazer a figa com a mão ao passar perto dela, mesmo que fosse dentro do bolso, a minha mãe não me permitia fazer isso, dizia que isso não era necessário, e talvez por isso eu aprendi a ser forte, a resistir olhares... A tia Júlia também queria comunicar ao mundo com símbolos, afinal quem roubara seu filho fora o dinheiro, e ela agora vingava-se queimando o que estava no seu poder, mesmo que depois tivesse que passar fome... Se eu tivesse a valentia da tia Júlia poria-lhe lume a este banco, reparo que na parede há dous extintores, talvez eles já tenham pensado que gente como eu pode entrar nos bancos; gente que temos nossas diferenças com estes lugares, pois mesmo que a mim o dinheiro não me levou o filho para a Venezuela, eu nem tenho filho, e a minha filha é demasiado jovem para emigrar... Mas o dinheiro já me rouba também, o dinheiro rouba os pais e rouba as mães das suas crianças, o mundo moderno é assim...

Um dia destes vou queimar uma nota de cem euros para homenagear as ensinanças da tia Júlia, mesmo que durante algum tempo eu a temi, especialmente quando via ao tio Servando botando as fraldas da camisa por fora das calças e levando um alho no bolso para proteger as suas vacas, pois elas ficavam paradas quando a tia Júlia as olhar, e as paridas não deixavam mais mamar o bezerro... Para esse mistério eu não tenho resposta, ora da tia Júlia eu aprendi, mas deste hominho de gravata riscada nada poderei aprender, tem um rato com forma de carro, a companhia de seguros de auto ofereceu-lhe essa gracinha, e a cada ano lhe oferece um novo, e ele é feliz, tanto ou mais do que eu com as folhas da macieira que a cada ano o outono me oferece...