A Rousia é essa montanha que herdei sozinha, e que está prenhada de mar, e por ele eu um dia viajarei para ir a ilha dos nossos, o povo que desapareceu da aldeia da Rousia. Ficam casas desfeitas, com paredes a amparar carvalhos que crescem na ausência do povo ido... Concha Rousia
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terça-feira, 27 de agosto de 2013
Sheraraze: Além do Deserto
(Ou a Crónica de uma insónia anunciada)
Se soubésseis como eu me quero perder deixaríeis de me visitar mil e uma vezes, deixaríeis de me falar, de me conectar com o mundo em que eu já não acredito, mesmo sabendo que existiu. Duvido até da memória, sei como se fabricam as cousas nos olhos, quanto mais a lembrança do que foi visto, e misturado depois com imaginação, fantasia, medo e outros condimentos menos gostosos e mais perigosos. Andava eu com esses assuntos da percepção na cabeça quando o sol se foi a navegar o Atlântico. Com velas pretas sobre mim cavalga então a noite, e eu sonhando com que chegue a madrugada, azul, verde e dourada...
A insónia caiu ontem com uma densidade que nem a pedra mais dura, quebrou a noite em mil e um pedaços, em cada pedaço achei uma dúvida minha, e nem um só conto e nem sultão ao que contar-lho. Como me distrair? terei que beber água. Fui a cozinha tantas vezes como noites nasceram da pedrada...
Fui e fui e voltei ir, e ir, e ir... Até que os móveis da sala, aborrecidos de me verem passar, começaram a olhavam-me de jeito estranho, nem vou dizer que me olhassem mal, digo apenas estranho...
Primeiro olharam para mim como se me não conhecessem, o que achei bem esquisito, pois eles me conhecem desde que vivem aqui, me conhecem vestida, me conhecem nua, me conhecem alegre, triste, saudosa, sozinha, acompanhada... O que vou dizer?! O sofá sabe mais segredos meus dos que eu poderia ter contado numa vida a um psicanalista, nem eu própria poderia lembrar todos nestas noites juntas que como um livro preto, sem folhas, se colocou dentro de mim, e fora de mim, pois a pele também não me dorme hoje, parece como que tudo proe*, ainda bem que na sala não há espelhos. Nem quero pensar o que me diriam...
Pensei em desistir de ir beber, assim também evito ter que passar pelos espelhos do quarto de banho, melhor ficar na cama bulindo e rebulindo o corpo e as noites até que tudo se solde e o sono prenda raiz em mim e deixe sair a árvore que cresce pelos sonhos adiante. Mas estava curiosa, será que a pedra vulcânica esta da insónia também alterou a mobília da sala?! Estive para sair a perguntar, sei, sei que móveis não falam, mas eu disse perguntar, não disse ouvir o que os móveis tenham para dizer... E fui, fui convencida de soltar aquelas minhas perguntas sobre a tapete cor do vinho e suavidade das plumas dos anjos, e quem sabe...! talvez algum poema, ou pensamento filosóficom apareça, por vezes isso acontece. Fui.
Mas...
Qual não seria a minha surpresas quando ao entrar na sala vi que os moveis estavam todos juntos, como numa reunião conspiratória, um motim, demasiada camaradagem, diria eu; a cadeira em que sempre me sento tinha uma pata sobre o sofá em atitude de aproximação para contar segredos, ou cousas piores. Sem dúvida estavam maquinando alguma coisa. Não podia dar crédito ao que viam os olhos, esfreguei-os fechados com os punhos, como fazem nos filmes, tinha que ser sonho, miragem, tenho andado muito a pensar em desertos. Tem que ser isso; efectivamente abri de novo os olhos e vi tudo no seu lugar; na sala cada cousa tem o seu lugar, pelo menos desde que é sala, antigamente foi corte de vacas, e eu fico a imaginar que ainda elas moram cá comigo... Se morassem elas, a elas sim saberia eu perguntar, e achar resposta ao ritmo do remoer e do chocalho, verdadeiro Gong...
Respirei calmamente. Dei volta dizendo-me a mim mesma 'vamos para a cama não vá ser o diabo' E aí foi que o móvel mais novo, o recém chegado de IKEA, pretinho, quase um desconhecido ainda em casa, me cravou a olhada pelas costas, como se gritasse: "Não queremos que nos cubras com os lenços brancos" Foi assim que soube que a hora de partir tinha chagado. Assusta descobrir assim que moramos nos objectos, descobrir que a alma se reparte por toda a parte. Quanto custará recolhê-la agora, arrancá-la para levá-la?! Será que ela é para ficar repartida, gastada, como água que regou caminhos?! E quando se termina seu trajecto, suas mil e uma noites, ou suas vidas, o rio seca... e a última gota de nós chega ao imenso mar da morte. Bom, fui para a cama, finalmente a profecia tinha-se cumprido: um pensamento filosófico, ou poético, ou miragem filha de um deus onírico, tinha-me visitado.
Concha Rousia 27,8,13
prói* (de prurido)
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